sexta-feira, 6 de agosto de 2010

A Deixa

Todos os dias haverá algo para impedir sua vida. Uma mãe doente. Um vício. Dor nas costas; falta de inspiração. Cansaço. Todos os dias haverá um motivo para você deixar de viver e prolongar sua dor. Um câncer. Contas para pagar. Um céu fechado que promete tempo ruim. Um dia ruim. Mais um. Todos os dias existirá um sentimento de fraqueza que o fará virar para o lado e dormir. Ligar a televisão e assistir um novo filme ao invés de fazer sua própria película. Seu auto-retrato. Uma poesia. Algo que valha a pena. Sua marca no mundo. Uma receita inovadora. Sua mão no cimento fresco da calçada. Seu pensamento na calçada. Uma idéia concreta. Sua assinatura no tempo; uma cicatriz na história. Todos os dias haverá alguém para ter pena. Uma mulher ou homem ou criança que sofre mais do que você. Uma mulher ou homem ou criança que o fará ficar com o cu na mão. Todos os dias haverá um homem para você temer. Uma mulher que roubará sua alma; uma virgem insana ou uma esposa vagabunda para ocupar sua ansiedade. Haverá durantes todos os dias um motivo para que você deixe de viver sua vida. Frustração; preguiça; medo; um jogo de futebol ou uma costura mal feita. Um engarrafamento que o deixará irritado. O ar-condicionado quebrado. Um pneu-furado. A morte de alguém ou a hora-extra no seu emprego que o deixará exaurido demais para construir algo belo. Para viajar. Para ter coragem de destruir aquilo que você odeia. Todos os dias faltará um motivo realmente significativo para lhe impulsionar a fazer o que deve ser feito. Um novo programa para distrair sua mente. Mais uma rodada de cerveja para compensar seu estresse. Mais uma. Um fim de semana para recuperar as energias. Mais um. Todos os dias haverá algo em que você se apoiar para justificar seu tempo perdido. Sufocar sua vida. Todos os dias existirá um gerente de marketing engraçado e bem sucedido para você chupar; mas ele paga seu salário. Uma desculpa para não reclamar. Uma festa para ir. Uma nova rodada. Uma liquidação imperdível que fará você adiar sua vida por mais um dia. Mais um. Uma maquiagem borrada; uma lâmpada queimada que preencherá seu tempo. Um prego para ser colocado.




Todos os dias haverá um motivo para você sair e voltar para a cama sem começar sua obra. Sem fazer o seu discurso. Sem aprender uma língua, conhecer alguém, fugir de alguém. Nunca surgirá o momento certo para você deixar de sonhar e começar a fazer. Para transformar a teoria em prática e escrever seu livro, vender seu projeto, pedir o divórcio. Comprar uma casa na praia; pichar uma parede; fumar maconha. O dia de amanhã não será mais colorido do que foi hoje. Seus problemas não acabarão. Seu tumor não ficará menor e seu vizinho insone continuará fazendo barulho durante a madrugada. Você não vai ganhar na loteria. A pessoa com a qual você se casou não irá ficar mais bonita com o tempo, e o condicionador para caspa ficará cada vez mais caro. E você continuará tendo caspa. E será sempre muito velho, muito novo, mais feio do que os outros e mais pobre e gordo demais, tímido demais ou exageradamente impulsivo. Você terá muitas variáveis para considerar, dificuldades a resolver; terá um carro caindo aos pedaços ou uma cadeira de rodas, um dente faltando, um pau ou um busto menor do que você queria, um emprego que você não queria, uma família que não queria você. Todos os dias da sua vida haverá alguém para dizer o que você deve fazer. Todos os dias você deixará de fazer o que importa. Você vai estudar, carregar, beber, conversar, cozinhar, trepar, datilografar, telefonar e descansar. Mas não irá criar seu próprio espetáculo. Você passará o dia aparafusando, buscando e contando, recontando, mas não terminará seu manuscrito jogado no fundo da gaveta. Vai assinar, converter, contratar e preencher, mas não deixará de ser seu carrasco pessoal, o estrangulador de si mesmo. Seu próprio medo, enraizado tão profundamente que já se tornou parte de você. Alimentado por você. Alimentando-se de você. Um matadouro psicológico. Todos os dias você descobrirá uma nova forma de enterrar suas expectativas. Um abatedouro de desejos. Suicídio emocional. Você se levanta pela manhã e descobre que o aquecedor estragou novamente, e desiste de pedir demissão hoje. Acha melhor esperar para mandar o seu chefe enfiar o dinheiro dele no rabo na semana que vem. Ou no mês que vem. Você vai esperar o próximo pagamento. Vai esperar o resultado do exame. Vai deixar o primeiro ato da sua peça trancada em uma pasta até o momento certo. Esperar um clima mais agradável para fazer sua viagem. Aguardar até que encontrem uma cura para o seu problema de pele. Até que a inflação diminua. Que seu filho cresça. Esperar até o fim do ano para abandonar tudo e começar a viver. Ou até o dia em que você seja demitido. Morra de AIDS. Roubem seu genial projeto. Você espera até o dia em que uma bala perdida acerte a cabeça de alguém, haja uma colisão aérea ou um carro incendeie-se com o motorista dentro. A sua cabeça; o seu carro. O jato particular que leva você até seu próximo cliente. Ou o luxuoso restaurante onde, a alguns sorrisos falsos e apertos de mão de fechar um rentável negócio, você diz, recostado na poltrona de veludo, que essa será sua última conquista empresarial. Seu último contrato milionário antes de hipotecar sua casa e se mudar para outro continente. E então um homem com mais ideais, motivações e culhões que você entra no lugar com dinamite presa ao corpo e explode os clientes, os funcionários, você e o seu sucesso financeiro.




 Todos os dias haverá algo mais divertido para assistir. Uma tarefa mais simples a ser realizada. Dia após dia, você descobrirá milhares de maneiras diferentes de se tornar seu próprio cárcere; sua própria fábrica de razões e fardos para não viver como deveria. Não fazer o que deve ser feito. Todos os dias você conhecerá um novo jeito de ignorar sua existência, abrir mão do seu talento e desperdiçar os anos que lhe restam. As semanas. As horas. Todos os dias haverá algo para impedi-lo de viver: um teste, um pai alcoólatra, um atentado. Uma tragédia no estado vizinho. Luto. Uma mancha de refrigerante no seu vestido de formatura. Sua vida não irá mudar. Não irá melhorar. Não ficará mais bela, mais rica, mais fácil e menos traumatizante. Você não deixará de sofrer. Todos os dias você poderá morrer. E todos os dias você poderá dar sentido à dor, ao sofrimento, aos estupros, às doenças, fomes e guerras do mundo; poderá valorizar cada sacrifício já realizado apenas para que você pudesse fazer o que importa. Criar sua história, deixar sua dádiva para o mundo e sentir que o poder de deus é simplesmente tudo aquilo que você deveria estar criando e destruindo agora. Matando e amando. Dando seu toque pessoal ao universo, assumindo, extraindo e modificando o que é seu pelo direito de nascença, sua assinatura na crosta da terra, em uma parede ou numa folha de jornal. Seu rosto, seu nome, seu trabalho; é o que continuará vivo depois do último dia. Seu último dia. Pode chegar daqui um ano. Dois. Dez. Ou amanhã. Ou não. Todos os dias haverá uma opção de mudar as coisas. Um motivo que será ignorado. Uma razão que você fingirá não ver. É uma questão pessoal. Uma escolha que você terá medo de tomar. Um impulso para agir. Uma deixa. E todos os dias haverá uma pergunta emoldurada atrás dos seus olhos:




Que tipo de pessoa você quer ser quando morrer?




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